sexta-feira, 9 de maio de 2008

Quando eu Acreditava....

...escrevia, tal como hoje, no que acreditava. Escrevia, tal como hoje, com o coração. Sentia da mesma forma, mas tinha uma esperança diferente na humanidade....Hoje, talvez tenha ganho em realismo e perdido nos sonhos. Como ensinava Sidharta, talvez esteja mais próxima do caminho do meio. Quando em 1999 resolvi vir às raízes do que sou, encontrei um Alentejo bem diferente do que tinha criado na minha imaginação. Do imaginário da infância, tinha-me ficado um Alentejo, quente, com cheiro a liberdade, com Natais gulosos, e as tias, os tios, as primas e os avós á lareira...a realidade...a de há quase 10 anos e a de hoje é bem diferente. Os tios e os avós mudaram de morada...as primas entraram pelas suas vidas dentro...e já não há Natais daqueles...agora há outros, diferentes.
Quando cá cheguei para aqui viver, cheia de esperança, escrevi um pequeno texto que publiquei na "Folha de Montemor". Um amigo meu, que foi membro do partido comunista (noutra vida), leu-o e teve uma reacção inesperada...achei inicialmente que ele iria gostar, mas não, fartou-se de vociferar...chamou-me irrealista, que o Alentejo não era nada daquilo que tinha escrito, que era a luta e a fome e a miséria...que estava a tapar a realidade com prosas poéticas inconsistentes...enfim...o mais engraçado é que hoje, embora por diferentes motivos, dou-lhe razão. O Alentejo não é nada do que sonhei e escrevi. Talvez não seja possível ainda, depois de tantos anos de sofrimento, opressão e fome, fazer um Alentejo de gente aberta, feliz, evoluida, que não passe grande parte da sua vida a remoer o seu semelhante....talvez um dia...Entretanto, para que quem se deu ao trabalho de ler esta dissertação sobre o passado, presente e futuro desta região a sul de Portugal...deixo aqui o referida texto. Julguem por vós mesmos...

CHEIROS

Entrei na cozinha e o ar estava inundado de odor a pêssegos. Deixei-me envolver pelo cheiro e fui levada pelo vórtice das memórias que o tempo distraiu. Entrei pela infância como quem passeia na montanha russa da feira impopular dos tempos de criança, que tanto nos enternece como nos atira para as terras movediças da inconformidade. Mas apesar de todos os arrependimentos, a memória deixa-nos na boca odores com o sabor da inocência e o desejo de reter pelos tempos imemoriais os cheiros que só existem porque os cheiramos.

Seguindo atrás do vento cheguei ao lugar com cheiro a terra, aquele cheiro seco e solarengo que nos sussurra em jeito de aviso ou predestinação levado por Aeolo aos ouvidos de quem já viveu aqui, para não cair na tentação de deixar secar o peito. É assim o meu Alentejo! Envolto nos cheiros da terra, pincelado pelo odor dos pêssegos, das cozinhas, das casas brancas de riscas azuis como o céu, dos terraços apontados ao divino, do sol mais quente que todos os sois que conheço, das gentes que teimam em não deixar secar o coração.

Sabe quem já passou por estas ruas empedradas de calor intenso a derreter a vontade de dar mais um passo, que não é fácil reter o cheiro deste Alentejo esquecido para alguns, desejado por tantos outros, subjugado por outros mais. Sabe quem vive aqui, quem se levanta pela manhã banhado em cheiros, que aqui o Sol não seca nem corrói, a terra não enruga e a vontade não desiste. É assim o meu Alentejo!

Terra das amplitudes tão térmicas como o horizonte, fustigada pelo vento que arde a alma, queimada pelo frio que nos entra pelo corpo dentro a fazer-nos desejar o estio. Também o inverno aqui tem cheiro a terra queimada pela chuva oblíqua a declamar poemas nas estórias deste povo sobre a capa da história. Apercebo-me delas pelas mãos crespas do trabalho de sol a sol, de tempestade a tempestade. Tocam-me pelo olhar dos velhos a desfiar dominós recitando dentro das palavras a enorme sabedoria de uma vida inteira de trabalho, transpirando a alquimia dos segredos que com eles ficarão para sempre encerrados se não lhes perguntar-mos docemente quem são e porque aqui passaram para ficar.

Não perco porém a esperança de que os aromas múltiplos deste povo perdurem eternidade fora, misturados com o odor dos pêssegos, da terra mãe desta sabedoria que se transporta de vida em vida. É assim o meu Alentejo! O nosso Alentejo, os que o amamos porque o nosso corpo dele faz parte e as nossas vidas, por muito distantes quem tenham andado, só existem porque nutridas pelo cordão umbilical deste sol quente batido a chuva, corporizado nos sobreiros, nos empurram a vontade de seguir em frente, sempre em frente. Este crescendo de vida dança-nos no ventre e coreográfa-nos o ser, os seres que o Alentejo abraça e beija longa e ternamente. Para quem não saiba ou não queira saber, fique sabendo: é assim o Alentejo!


Vanda Caetano
Algures em 2001

quinta-feira, 8 de maio de 2008

FOI HÁ QUASE 10 ANOS

Foi há quase 10 anos....que aqui cheguei, cheia de esperança e vontade de fazer coisas novas, neste Alentejo seco e árido para quem vem de novo, mesmo que retorne, mesmo que tenha aqui raízes. Nessa altura, pensava ser possível fazer parte deste "mundo". Hoje acho que não.
Segunda feira foi a enterrar um amigo. Na verdade, mais amigo do meu pai que meu....talvez pela diferença de idade ou apenas de vivência social, política, vivência....ponto. Eu sempre lhe chamei Pinto de Sá pai. Pai do presidente da Câmara deste Montemor-o-Novo, onde vivo, encontrava-me por aí, nas mais variadas alturas desta minha vida alentejana e falávamos. Muito. Desabafos, a maior parte das vezes, revoltas, constatações. Tinha mau feitio...diziam.Eu gostava! Diziam muitas coisas...que foi da pide...imagine-se!!!...companheiro de luta do meu pai, no período pós 25 de abril, sempre foi um homem de esquerda, sempre se assumiu. e AGORA??? o QUE IRÃO DIZER MAIS? Podem dizer que trabalhou até ao fim. Que sempre se quiz manter activo e vivo. Que era ele mesmo, apesar do que diziam!!! Eu gostava! Dizia tudo o que lhe apetecia. Não se calava. Era austero. Não mostrava os dentes. Não era hipócrita. Eu gostava dele. Morreu. Não soube. Só hoje. Pinto de Sá pai...vou ter saudades!